ROMANTIZANDO A VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA FAMILIAR
No Recôncavo e no Sertão, durante conversas em família ou em rodas de amigos, é bem comum ouvirmos histórias que evocam uma ancestralidade indígena com frases como “minha avó foi pega no laço” ou “minha avó foi pega no mato”. Essas expressões, muitas vezes ditas com certo orgulho ou até mesmo um toque de romantismo, mascaram uma realidade histórica sombria e dolorosa.
Essas palavras, que parecem inofensivas e até nostálgicas, na verdade carregam o peso de uma violência brutal. Referem-se à prática de capturar mulheres indígenas, arrancando-as de suas tribos e de suas vidas, muitas vezes à força, com uso de laços, cães e outros meios cruéis. Essas mulheres, uma vez sequestradas, eram submetidas a um processo de “amansamento” — um eufemismo que oculta a dura realidade do estupro e da dominação sexual, disfarçada sob o manto da colonização e do patriarcado.
O ato de “pegar no laço” era, de fato, um ato de violação, uma forma de subjugar o corpo e a vontade dessas mulheres para satisfazer os desejos e as necessidades dos colonizadores. Transformadas à força em esposas ou amantes, essas mulheres indígenas viviam sob um regime de violência constante, onde sua identidade, cultura e humanidade eram sistematicamente negadas.
Romantizar essas expressões, ainda que de forma inconsciente, perpetua o apagamento dessa violência histórica e transforma algo profundamente traumático em um elemento de identidade familiar. Essa romantização serve não apenas para encobrir o passado, mas também para minimizar o impacto dessas atrocidades nas gerações subsequentes.
É fundamental que revisitemos essas narrativas com um olhar crítico, reconhecendo o que elas realmente representam. A ancestralidade indígena, tão rica e diversificada, não deve ser lembrada por esses atos de violência, mas sim pelo legado cultural, espiritual e histórico que essas comunidades construíram e mantiveram, muitas vezes em face de uma opressão brutal.
Ao desvelar a verdade por trás dessas expressões, estamos não apenas fazendo justiça à memória dessas mulheres, mas também reeducando nossa própria percepção da história. É um ato de resistência contra a tentativa de apagar ou distorcer as violências que marcaram nossa formação como sociedade.
Reconhecer essa realidade é o primeiro passo para honrar verdadeiramente a ancestralidade indígena. Ao invés de perpetuar narrativas que romantizam a violência, devemos buscar formas de lembrar e celebrar essas histórias com respeito, dignidade e justiça. O passado não pode ser alterado, mas a forma como o narramos e o compreendemos pode — e deve — ser transformada.
(Em memória de minha bisavó Maria Roza)