A 1ª SEMANA DE CULTURA DE CRUZ DAS ALMAS EM 1968
A 1ª Semana de Cultura de Cruz das Almas, realizada de 10 a 17 de novembro de 1968, foi, sem dúvida, o acontecimento cultural mais importante da cidade no século passado. Esse evento, promovido pelo Grêmio Castro Alves do Colégio Alberto Torres, marcou uma época e deixou um legado que perdura até os dias atuais. E ninguém melhor para nos contar essas memórias do que o escritor Cyro Mascarenhas, que não só testemunhou, mas também participou ativamente daquele momento histórico.
Naqueles tempos sombrios da ditadura militar, realizar um evento de tal magnitude não foi tarefa fácil. A atmosfera estava carregada de incertezas e desconfianças. Foi necessária uma autorização expressa da Polícia Federal, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), para que a Semana de Cultura pudesse acontecer. Houve muito “diz que diz que” na cidade sobre o evento, afinal, cultura sempre foi vista com desconfiança pelos tiranos de plantão. E foi preciso muitas idas e vindas do Compadre para convencer o Coronel Luiz Artur.
O sucesso da 1ª Semana de Cultura deve-se em grande parte à atuação decisiva do poeta Luciano Passos que, com suas boas relações no ambiente cultural de Salvador, conseguiu atrair figuras renomadas para o evento. Ele era cunhado de João Ubaldo Ribeiro, então cronista da Tribuna da Bahia e que mais tarde se tornaria um dos maiores escritores brasileiros. João Ubaldo não apenas participou como conferencista, mas também lançou seu livro “Setembro Não Tem Sentido” durante a semana. Além dele, Floriswaldo Mattos, poeta e jornalista dos Diários Associados, e Roberto Santana, produtor musical responsável pelo lançamento de cantores famosos como Elomar e Fafá de Belém, também marcaram presença.
Paralelamente à programação principal, houve uma exposição de artes plásticas na sede do Rotary Clube, com obras de artistas locais e outros consagrados de Salvador, como Renato Passos. Era um verdadeiro banquete para os olhos e a mente, uma celebração da criatividade e da expressão artística.
No entanto, a desconfiança dos órgãos de segurança aumentou após a conferência de Evandro Guerra, que discutiu a posição da Igreja e o desenvolvimento socioeconômico da América Latina. Em um trecho de sua fala, ele fez alusão à postura de Cristo a favor dos humildes e injustiçados, mencionando a nova tendência progressista do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Alguns conservadores interpretaram que ele teria dito que Cristo foi o primeiro comunista da terra, o que gerou ainda mais tensão.
Para piorar a situação, estudantes da Escola de Agronomia picharam os muros da cidade com palavras de ordem como “ABAIXO A DITADURA”, ações que não tinham nenhuma relação com o evento. Isso levou os militares a enviarem agentes disfarçados para monitorar e eventualmente coibir quaisquer manifestações antimilitares, chegando a considerar a suspensão do evento. Mas todo esse esforço foi em vão, pois a Semana de Cultura transcorreria tranquilamente, fiel aos seus objetivos culturais.
Houve um momento de descontração durante a festa dançante em homenagem aos participantes, quando o escritor João Ubaldo, depois de alguns goles de uísque, puxou uma paródia de uma canção latina. Junto a outros intelectuais à sua mesa, ele ridicularizou os ditadores do continente. O primeiro verso ficou gravado na memória de todos: “E viva Castelo, Anastasio Somoza, Rafael Trujillo e Onganía…”. Foi um momento hilário, uma pequena rebeldia em meio a um ambiente tão controlado.
No final, a 1ª Semana de Cultura de Cruz das Almas foi um sucesso e entrou para a história. Foi um evento que mostrou o poder transformador da cultura e da arte, mesmo em tempos de repressão. E para Cyro Mascarenhas, essas lembranças são um tesouro, uma prova de que, mesmo nas épocas mais difíceis, a chama da cultura e do conhecimento pode brilhar intensamente.